Artigo de Cleber de Oliveira Tavares Neto é Procurador da República e membro da Associação do MP Pró Sociedade.
“Todos os maus precedentes começam com medidas perfeitamente justificáveis.”
(Júlio César)
Temos visto todos os dias medidas impostas por decretos estaduais e municipais limitando direitos fundamentais. As limitações vão desde o direito ao exercício da atividade profissional, já que determinam o fechamento de diversos tipos de estabelecimento, até gravosas limitações ao direito de ir e vir, com prefeitos e governadores trancando cidadãos em suas próprias cidades e praias sendo fechadas como “medidas sanitárias preventivas” de combate à gripe chinesa (com o descumprimento sendo ameaçado de prisão por um suposto “crime contra a saúde pública” — que analisaremos em outro artigo).
Esses decretos (e recomendações, e decisões judiciais) contêm, dentre os seus “considerandos” preambulares e fundamentações jurídicas, a menção à “Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional OMS em 30 de janeiro de 2020” e ao disposto no Regulamento Sanitário Internacional, promulgado pelo Decreto Federal nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020. Essas seriam as justificativas para impor isolamentos e quarentenas e restringir as atividades econômicas em geral enquanto durar a “Emergência em Saúde Pública”.
O primeiro erro na interpretação do Regulamento Sanitário Internacional (RSI) e da atual declaração de emergência da OMS é acreditar que todas as medidas restritivas previstas no regulamento devem ser adotadas pelos países, sem análise do estágio de disseminação do vírus e sem avaliar os impactos nas atividades econômicas e nos direitos civis.
A própria OMS, por seu comitê, já declarava em 30 de janeiro de 2020 que tais elementos deveriam ser levados em consideração pelos governos em seu “parecer como Recomendações Temporárias nos termos do RSI (2005)”:
“O Comitê reconheceu que, em geral, as evidências demonstram que restringir o movimento de pessoas e bens durante emergências de saúde pública pode ser ineficaz e desviar recursos de outras intervenções. Além disso, as restrições podem interromper a ajuda e o suporte técnico necessários, podem atrapalhar os negócios e ter efeitos negativos nas economias dos países afetados pelas emergências.
No entanto, em certas circunstâncias específicas, medidas que restringem o movimento de pessoas podem ser temporariamente úteis, como em ambientes com capacidades de resposta limitadas ou onde há alta intensidade de transmissão entre populações vulneráveis.
Em tais situações, os países devem realizar análises de risco e custo-benefício antes de implementarem essas restrições, para avaliar se os benefícios superariam os inconvenientes.” (1)
Além disso, o RSI esclarece logo em seu artigo 1º que “recomendação temporária significa uma orientação de natureza não-vinculante emitida pela OMS consoante o Artigo 15, para aplicação por tempo limitado, baseada num risco específico, em resposta a uma emergência de saúde pública de importância internacional, visando prevenir ou reduzir a propagação internacional de doenças e minimizar a interferência com o tráfego internacional”.
É portanto de uma desonestidade intelectual sem tamanho quem usa as recomendações OMS como vinculantes, querendo impô-las aos gestores municipais, estaduais ou federais sob pena de processo de improbidade ou, dai-me paciência, “crime de genocídio”.
Não vamos, porém, parar nossa análise aqui. O segundo erro, este ainda mais gritante, é adotar medidas que não estão previstas no Regulamento Sanitário Internacional da OMS e colocar na conta dela as arbitrariedades.
Para começo de conversa, o RSI não prevê medidas de restrição a locomoção de pessoas que atinjam indiscriminadamente toda a população. É só se ver pela própria definição dos termos “isolamento” e “quarentena” constantes do regramento internacional, repetidos pela lei 13.979/2020 (que estabeleceu os parâmetros legais para o combate ao COVID-19) e outros atos normativos, como o Decreto do Estado do Rio de Janeiro 46.966/2020. “Isolamento” é aplicável tão somente a pessoas ou objetos contaminados, enquanto “quarentena significa a restrição das atividades e/ou a separação de pessoas suspeitas de pessoas que não estão doentes ou de bagagens, contêineres, meios de transporte ou mercadorias suspeitos, de maneira a evitar a possível propagação de infecção ou contaminação”.
Se tomarmos a Orientação provisória de 19 de março de 2020 (2), veremos que há uma série de elementos a se considerar para a instalação de uma quarentena e que “se não implementada adequadamente, a quarentena pode também criar fontes adicionais de contaminação e disseminação da doença”. A quarentena também não se aplica a cidades inteiras, como têm se feito, mas a locais determinados, como sugerido nessa mesma orientação: “possíveis locais para quarentena são hotéis, dormitórios, outras estruturas que atendam grupos, ou o domicílio do contato.”
As maiores restrições que a OMS solicita que sejam consideradas pelos governos dos países onde já haja transmissão comunitária são (3):
– evitar aglomerações;
– fechamento de escolas;
– fechamento do transporte público (que, porém, é considerado pelo mesmo documento como atividade crítica e essencial);
– fechamento de locais de trabalho e “outras medidas”;
– quarentenas e isolamentos.
Entretanto, não é demais lembrar que nada disso é obrigatório, e que o fechamento de praias e de outros locais públicos não consta expressamente das recomendações da OMS, que se contenta em orientar que se evitem aglomerações.
Nossos gestores e operadores do Direito precisam se lembrar também que, mesmo querendo adotar as medidas mais drásticas optativamente recomendadas pela OMS, há a necessidade de se cumprirem os requisitos legais e constitucionais para impor restrições aos direitos dos cidadãos, ainda que sob o argumento de proteção da saúde pública.
Assim, cabe aos Executivo e Legislativo, nas esferas federal, estadual e municipal, obedecer aos parâmetros jurídicos na expedição de seus atos normativos, como as exigências da lei 13.979/2020 e os limites constitucionais às restrições de direitos fundamentais. E compete ao Judiciário e Ministérios Públicos estaduais e Federal fiscalizar a observância do Direito na expedição desses atos, sem se imiscuir nas escolhas políticas realizadas dentro da lei.
E a ninguém compete bradar ao vento recomendações da OMS como forma de mascarar seus próprios medos. Ou outras intenções vis e ignóbeis.
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